A confissão da leoa
Mia Couto
"Em 2008, a empresa em que trabalho enviou quinze jovens para atuarem como oficiais ambientais de campo durante a abertura de linhas de prospeção sísmica em Cabo Delgado, no Norte de Moçambique. Na mesma altura e na mesma região, começaram a ocorrer ataques de leões a pessoas. Em poucas semanas, o número de ataques fatais atingiu mais de uma dezena. Esse número cresceu para vinte em cerca de quatro meses.
Os nossos jovens colegas trabalhavam no mato, dormindo em tendas de campanha e circulando a pé entre as aldeias. Eles constituíam um alvo fácil para os felinos. Era urgente enviar caçadores que os protegessem. Essa urgência somava-se, é claro, à necessidade de proteção dos camponeses da região.
Sugerimos à companhia petrolífera que tomasse em suas mãos a superação definitiva dessa ameaça: a liquidação dos leões comedores de pessoas. Dois caçadores experientes foram contratados e deslocaram-se de Maputo para a Vila de Palma, povoação onde se centravam os ataques dos leões. Na vila eles
recrutaram outros caçadores locais para se juntarem à operação. O número de vítimas mortais, entretanto, tinha subido para vinte e seis.
Os caçadores passaram por dois meses de frustração e terror, acudindo a diários pedidos de socorro até conseguirem matar os leões assassinos. Mas não foram apenas essas dificuldades que enfrentaram. De forma permanente lhes era sugerido que os verdadeiros culpados eram habitantes do mundo invisível, onde a espingarda e a bala perdem toda a eficácia. Aos poucos, os caçadores entenderam que os mistérios que enfrentavam eram apenas os sintomas de conflitos sociais que superavam largamente a sua capacidade de resposta.
Vivi esta situação muito de perto. Frequentes visitas que fiz ao local onde decorria este drama sugeriram-me a história que aqui relato, inspirada em factos e personagens reais.
Até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça."