Africanos livres:
A Abolição do Tráfico de Escravos no Brasil
Beatriz Mamigonian
"Este é um livro há muito esperado. Sobre os assuntos aqui tratados, sua autora já escreveu numerosos artigos e capítulos em coletâneas, alguns dos quais retirados da tese de doutorado que deu origem à presente publicação. Africanos livres aprofunda e expande a tese e se destaca pelo admirável trabalho de pesquisa, a vasta bibliografia consultada e a qualidade interpretativa. Trata-se de obra enciclopédica sobre seu tema central, que são os cerca de onze mil cativos resgatados do tráfico ilegal que ganharam no Brasil o título de “africanos livres”, mas também das centenas de milhares que o contrabando conseguiu sorrateiramente introduzir no país.
É preciso dizer logo na entrada ao leitor que “africano livre” foi, antes de mais nada, vítima de um eufemismo jurídico, pois se trata de expressão tipicamente ideológica que esconde uma realidade bem diversa da enunciada. Pois, como aqui demonstrado à exaustão, os africanos livres eram submetidos a um regime de trabalho forçado, com o suposto objetivo de educá-los para a liberdade, um longo aprendizado de catorze anos, em tese, mas que na prática, de modo sistemático, ultrapassava essa marca, sobretudo para aqueles empregados no setor público.
A própria concepção de liberdade que se procurou impor aos africanos representava uma afronta aos valores que conheceram lá do seu lado do Atlântico. Liberdade para os africanos era pertencer a uma comunidade, a uma linhagem, no interior da qual, a cada fase do ciclo de vida, se submetiam a rituais significativos de iniciação e se verificava sua inserção no processo produtivo. A liberdade que se impôs aos africanos resgatados do tráfico no Brasil e outras regiões do continente americano era de outra natureza e tinha dois componentes axiais: a mercantilização da força do trabalho — e não mais do trabalhador enquanto corpo escravizado — e a colonização da mente pela cristianização e outras formas de pensamento e comportamento, um artifício de reeducação semelhante ao que se fazia com o escravo. Esse, naturalmente, era o plano. Na prática, o que se verificou foi o consumo voraz de uma mão de obra baratíssima posta à disposição de arrematadores privados e do Estado, e este, ao mesmo tempo que controlava a distribuição desses trabalhadores, se servia deles em instituições públicas, obras e projetos de interiorização e modernização através do país."