Liberata
A Lei da ambiguidade
Keila Grinberg
"Liberata foi personagem da vida real. Escrava, depois liberta, mãe enquanto escrava e mãe já liberada, enfim defunta, tudo na primeira metade do século XIX. Neste livro, Liberata é quase ficção, ou antes, autora de ficção. Ela propõe o enigma de sua vida, tal como registrado nos documentos centenários sob guarda do Arquivo Nacional no Rio de Janeiro, e ela mesma guia o investigador pelos labirintos de interpretação e
evidências que permitirão decifrar o próprio enigma.
Deste modo é como Liberata e seu destino, e através dela e dele, as relações do mundo supostamente privado da escravidão, o mundo público das leis, do direito e do Judiciário, e os homens e mulheres escravizados, às vezes reescravizados, nos são revelados por Keila Grinberg.
“Por volta de 1790, José Vieira Rebello, morador na Enseada das Garoupas, termo do Desterro, foi à Vila de Paranaguá comprar uma mestiça de dez anos, Liberata, que pertencia a Custódio Rodrigues. Feita a transação, Vieira levou-a para sua casa e, escondido de sua mulher e filhos, passou a persegui-la pelos remotos e despovoados da região.
Um dia ele conseguiu levá-la para os matos e, finalmente, a possuiu. A partir de então, o capricho virou hábito.” Assim começa a narrativa de Keila das desditas de Liberata, cujo desenlace, contudo, será feliz: Liberata conquistará a liberdade.
Vários outros casos de ação de liberdade impetrados por escravos, e decididos em seu favor, transformam o enigma de Liberata na principal questão teórica da investigação: “(...) como um escravo, propriedade de alguém, pode recorrer ao Estado, o mesmo que garantia a existência da escravidão, para reclamar seu direito à liberdade, que seu senhor lhe negava?” E, convém repetir, eventualmente ganhar a causa e a liberdade.
Argumentos e evidências para responder a esse aparente contra-senso são dispostos por Keila Grinberg de forma articulada e sólida. Ao longo deles se vai tomando clara parte da história do direito brasileiro e da concepção que dele possuíam advogados e juízes. Também a relações entre o público e o privado no Brasil do século XIX são repensadas e inovadoramente reinterpretadas. No caminho, algumas teses clássicas sobre a escravidão no Brasil serão reptadas e invalidadas, sobretudo as que se referem à importância e papel da Lei do Ventre-Livre.
Resultado de exaustivo trabalho de levantamento e análise de caixas e caixas de documentação, nunca antes estudadas, o livro impressiona, para além da sofisticação intelectual, pela excepcional qualidade do artesanato.
O tratamento das evidências, a remissão aos documentos, hermenêutica de expressões arcaicas – é tudo cuidadosamente impecável. Dou pequena amostra. “Chamada a depor como testemunha, para confirmar a versão de seu curador, Liberata disse que nada tinha falado antes por medo, mas que o modo e a arte em que Vieira ocultava seus delitos sempre lhe inquietaram a consciência (nos autos, vinha escrito 'a paciência, aliás a consciência')”.
Tenho especial prazer em descobrir exemplos de brilhantismo argúcia em obras alheias. Foi assim quando redescobri os escritos políticos de José de Alencar, um autor morto. Está sendo ainda mais gratificante colaborar para a revelação de Keila Grinberg, que apenas começa a vida."
Wanderley Guilherme dos Santos.