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Pele Negra
Máscaras Brancas
De Frantz Fanon
 

"Entrementes o texto de Fanon, além das habituais, oferece várias outras possibilidades de traição. Antes de mais nada ele escreveu para um público próximo, com as mesmas referências culturais e intelectuais, sem imaginar que seu livro ganharia um destaque mundial permanente; e isso transparece aqui e ali, quando os fatos narrados ou os comentários omitem dados importantes por serem bem conhecidos naquela época e naquele lugar, não exigindo portanto maiores explicações, porém gerando, mais de meio século depois, alguma dificuldade de compreensão para o leitor brasileiro. Problema relativamente simples de ser resolvido: um aparelho de notas, sempre assinalado com asteriscos, vai seguindo todo o texto para impedir que o leitor sinta dificuldade de acompanhar o curso do raciocínio. Simples tecnicamente falando, porque a variedade dos temas evocados exige pesquisas em várias áreas. Projeto Pele negra [2].pmd 7 25/4/2008, 15:29 8 A dificuldade cresce com o fato de que Fanon usa vários tipos de linguagem, uma narrativa fortemente conceitualizada que lança mão de terminologias eruditas em latim, inglês e alemão, de terminologias médico-científicas, convoca conceitos enigmáticos da teoria da essência de Hegel, utilizando ao mesmo tempo o palavreado do argot, a gíria francesa, e dos regionalismos crioulos das Antilhas e do Senegal. Também não respeita fronteiras acadêmicas, penetra nos territórios intelectuais os mais variados, literatura, psicanálise, cinema, faz análises clínicas, “sócio-diagnósticos”; seu discurso tem um caráter epistemológico quando faz a crítica dos conceitos; tem um caráter didático quando explica mecanismos sociológicos e divulga conhecimentos científicos; tem um caráter político quando incita à ação e denuncia a exploração e a opressão; tem um caráter poético quando conta de modo comovente o drama do homem discriminado. E faz análises de vários gêneros de discurso, desvenda a mitologia de alguns heróis populares, insere pequenas dramatizações, cita poesia de alta qualidade... Ou seja, Fanon é uma vocação multidisciplinar que exige um esforço maior de tradução, particularmente no que toca a abundantemente citada poesia de Aimé Césaire, que é quando a dificuldade cresce, mas também é acrescida de um prazer inusitado, porque a tradução fiel, para manter o clima poderosamente poético, precisa ser mais criativa, mais traidora. Além do mais, o trabalho também foi árduo porque a edição francesa original de 1952, reeditada em 1975 sem correções, de onde o presente texto português foi ex-traído, é muito mal apresentada, o movimento do texto é desordenado, o quinto capítulo, que é quando Fanon entra de corpo e alma em campo, ficaria melhor na abertura do livro, existem trechos supérfluos que poderiam muito bem ser abreviados, erros de revisão, notas e bibliografia confusas, há pouco destaque para as numerosas citações, polêmicas sem que o argumento do adversário seja bem explicitado, e assim por diante: um verdadeiro tormento para o leitor. As Edições du Seuil não investiram em Fanon, faltou um profissional experiente que o ajudasse a fazer do seu primeiro livro uma obra impecável. De modo que um trabalho mínimo de organização foi feito na presente edição, sem alterar conteúdos nem mexer no jeitão geral da obra, só pra colocar um pouco de ordem na casa. Tentei chegar o mais perto possível do texto enquanto texto, redação, não só pelo vocabulário como pela prosa e pela paixão: quase não suprimi as repetições excessivas, as frases truncadas, o modo arbitrário de usar o parágrafo, não corrigi o modo freqüentemente complicado de expressão, o uso simultâneo do “nós” majestático e do “eu” coloquial, não tentei embelezar o texto de Fanon. Mas aproveitei daqueles momentos em que a traição é uma necessidade imperiosa, para deixá-lo mais saboroso ao nosso paladar. Aproveito também a oportunidade para destacar a generosidade do amigo Patrice Besso, que me ajudou a decifrar as passagens mais árduas de Pele negra, máscaras brancas. Obrigado, meu velho!"

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