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Thoth
Escriba dos Deuses
Pensamento dos Povos Africanos e Afrodescendentes
Volume III
Abdias Nascimento
"Naquela manhã de domingo, a Igreja de Nossa Senhora de Achiropita, localizada na rua sugestivamente batizada com o nome de 13 de Maio, em pleno bairro do Bixiga, no coração de São Paulo, estava engalanada em cores diferentes daquelas que nos acostumamos a associar à liturgia católica. Em lugar dos tons sóbrios e discretos, austeros e freqüentemente lúgubres, característicos dos rituais da Igreja Romana, o templo ostenta-va um colorido vivo, vibrante, presente não apenas em sua decoração, na qual ressaltavam o vermelho, o verde e o negro, aos quais se somava o amarelo, compondo um ambi-ente estranhamente festivo para uma tradição fundada na culpa, no pecado e na morte.Mais que nos alegres adereços, era no povo, presente em números generosos, que se deteria a vista ao contemplar aquela que, pela hora e local, deveria ser mais uma missa de domingo. Pois era um povo negro, em sua grande maioria, que superlotava as dependências da igreja, esparramando-se para fora desta, incapaz de contê-lo, e acrescentando ao inusitado colorido ambiente as diferentes gradações de tonalidade de sua pele.Era a semana do 20 de Novembro, e o Congresso Nacional Afro-Brasileiro, presidido pelo incansável professor e poeta Eduardo de Oliveira, promovia o Culto Ecumênico contra a Discriminação Racial e em Defesa dos Direitos Humanos, ocasião em que minha pessoa seria objeto de homenagem especial. Presentes o prefeito Celso Pitta - primeiro afro-brasileiro eleito para governar uma megalópole neste país - e esposa, a Cônsul Geral de Israel em São Paulo, Dorit Shavit, representando uma comunidade para a qual não se precisa explicar o significado de eventos dessa natureza, dirigentes do CNAB, militantes e simpatizantes do Movimento Negro de mais de 15 Estados, além de nossos aliados de diversas áreas.
Oficiada por quatro sacerdotes – os católicos padre Toninho e frei David, o pastor evangélico Dr. Euclides da Silva e o babalorixá Francisco de Oxum –, o culto teve o sabor marcante das coisas de origem africana, presente não só nos atabaques e outros instrumentos de percussão, mas também nos cânticos e nos movimentos a que o corpo se via irresistivelmente conduzido pela magia do ritmo contagiante dos orixás. Mais ainda do que isso, a mensagem transmitida pelos sacerdotes, em suas palavras e no seu gestual, demonstrava seu comprometimento com a busca da verdadeira fraternidade universal, as-sentada no respeito e valorização das diferenças étnicas, e não na busca de sua supressão pelo assimilacionismo que entre nós se disfarça com máscaras universalistas.Confesso que, coração calejado por tantas décadas de confronto com o racismo hipócrita de nossa sociedade, para o qual a Igreja Católica forneceu inestimável munição,me senti emocionado. Pela homenagem em si - o Troféu Zumbi dos Palmares -, que considero partilhar com uma legião de lutadores, ancestrais e contemporâneos, famosos e anônimos, que como eu têm dedicado suas vidas à concretização do sonho de liberdade,justiça e igualdade para os africanos e seus descendentes. Mas muito mais pelo aspecto simbólico de que se revestia a cerimônia. Afinal, não se estava ali apenas aproveitando“traços culturais” de origem africana para atrair negros e negras a um rebanho alheio.Fazia-se, isto sim, uma verdadeira experiência de integração, em que as partes se juntam sem abandonar sua essência, criando o novo sem perder a referência às respectivas matrizes.Na festa de confraternização que se seguiu ao culto, cuja peça de resistência não poderia deixar de ser uma suculenta e negra feijoada comunal, tive a oportunidade de rever antigos companheiros e conhecer alguns dos muitos militantes que têm contribuído para estimular minhas esperanças no triunfo final de nossos ideais. Dentre estes, a criação de uma Universidade Afro-Brasileira, defendida na pregação do padre Toninho, pároco daquela igreja, como centro de produção, reprodução e memória do pensamento dos africanos no Brasil, sonho que de há muito venho acalentando e que tenho agora a felicidade de ver compartilhado por irmãos e irmãs de luta dotados do talento e da determinação necessários para transformá-lo em realidade.
Momentos como esse demonstram que não têm sido em vão os nossos sacrifícios."
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