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Thoth 
Escriba dos Deuses
Pensamento dos Povos Africanos e Afrodescendentes
Volume IV

Abdias Nascimento

""A rotina de trabalho parlamentar é um desgastante exercício de paciência, determinação e perseverança, qualidades exigidas na elaboração, apresentação e acompanha-mento de iniciativas e projetos, num processo em que não poucas vezes se esbarra na incompreensão ou na malícia. Para um militante de longa data, que traz em si a indignação secularmente acumulada dos filhos da África sequestrados para construir o Brasil, esse processo é ainda por cima demasiado lento, sinuoso, um rio espreguiçando-se pela planície para descansar no mar, a tal ponto que nos faz questionar a validade da nossa presença num Parlamento cuja grande maioria dos membros representa – até quando não se dá conta disso – os interesses, explícitos ou mascarados, dos grupos beneficiários do racismo e da discriminação contra os afro-brasileiros. Pois minha experiência na Câmara e no Senado é mais um testemunho da eficácia da “democracia racial” como estratégia de dominação, o que se revela especialmente quando vemos serem utilizados contra nós até mesmo princípios constitucionais, como o da igualdade, aqui invertido para abortar qualquer perspectiva de lhe dar concretude. É o primado da retórica imobilizadora, da verborragia como substituta da ação, da visão da lei como freio à mudança social. Tudo isso às vezes desanima o velho militante. É um alívio, portanto, e uma injeção de otimismo, quando se consegue furar essa rígida retranca montada pelo conservadorismo e concretizar mesmo que um pequeno item de nossa imensa agenda de reivindicações, inflada de tantas e tantas necessidades prementes. Na última semana, foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, em caráter terminativo – o que significa não ser necessário levá-lo ao plenário –, meu projeto de lei que amplia a possibilidade de se recorrer à chamada ação civil pública para a defesa da honra e dignidade de grupos raciais, étnicos e religiosos. Uma das principais inovações desse meu projeto – com algumas emendas do Senador Josaphat Marinho que o aperfeiçoaram do ponto de vista jurídico – é facilitar, quando transformado em lei, a atuação das entidades afro-brasileiras em casos dessa natureza, facultando-lhes o direito de se habilitarem, como autoras ou litisconsortes, em defesa dos interesses coletivos de nossa comunidade. Com isso, ficará mais simples a atuação do movimento negro em casos como o do palhaço-cantor que ofendeu a todos nós, e a todos os democratas e libertários genuínos, ao gravar uma canção em que “homenageava” sua companheira negra utilizando “carinhosos” epítetos extraídos do arsenal de ofensas com que o racismo branco costuma contemplar a mulher negra. Espero que o Movimento Negro se utilize dessa nova e importante ferramenta à sua disposição para enfrentar o racismo no plano simbólico. Outra pequena, mas significativa vitória foi o sucesso do Prêmio Cruz e Sousa, iniciativa minha em parceria com o Senador catarinense Espiridião Amin. Confesso que os 65 trabalhos enviados para apreciação superaram em muito, dado o prazo exíguo de que dispunham os candidatos, nossas melhores expectativas. Coroaram-se, desse modo, os esforços no rumo de homenagear e divulgar a figura ímpar de um afro-brasileiro nascido na escravidão que atingiu – infelizmente, apenas depois de morto – as culminâncias do reconhecimento, em âmbito nacional e internacional, como um dos maiores poetas de todos os tempos, de todos os lugares e de todas as raças. A cerimônia de premiação, que ocorrerá em Sessão Especial do Congresso Nacional, servirá como um desagravo, tendo emblematicamente como palco o espaço que congrega a elite política do País. Além de tudo isso, na próxima semana estará sendo inaugurada, no Salão Negro do Senado, uma exposição de 53 pinturas de minha autoria, nas quais emprego elementos pictóricos e filosóficos da rica cosmogonia africana e afro-brasileira para reafirmar os valores milenares de nossa tradição cultural. Muito mais que a realização individual de um artista negro conduzido pelo destino para o terreno da política, encaro essa mostra como mais um signo das conquistas que os afro-brasileiros tem obtido, nos últimos anos, em função de nossa luta coletiva. Que ela possa ajudar a cimentar esse caminho de sucesso, sensibilizando meus colegas parlamentares a receberem com mais simpatia e compreensão as propostas do movimento negro organizado, das quais tenho procurado ser, com a colaboração de minha equipe, um veículo eficiente e dedicado."
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