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Thoth 
Escriba dos Deuses
Pensamento dos Povos Africanos e Afrodescendentes
Volume V

Abdias Nascimento

"Ao proclamar, cerca de oitenta anos atrás, que o século XX seria marcado pelo que chamou de “linha da cor”, o intelectual afro-norte-americano W.E.B. DuBois, um dos maiores teóricos do pan-africanismo, mostrava clarividência ao perceber não somente a importância que a questão racial assumiria nos cem anos subseqüentes, mas também sua crescente dimensão internacional. Organizador dos primeiros Congressos Pan-Africanos, DuBois identificava já então o caráter essencialmente semelhante do preconceito e da discriminação que se abatiam sobre os africanos e seus descendentes, vivessem estes no Continente Africano, na Europa ou em qualquer parte das Américas. No Brasil, embora o pan-africanismo de DuBois, bem como o de Marcus Garvey, fosse conhecido dos militantes afro-brasileiros mais informados, a dimensão internacional da questão racial sempre foi negada por aqueles que defendiam - e que ainda defendem - a idéia de que este país constitui um modelo à parte na área das relações raciais, uma espécie de paraíso terrestre em que pessoas de todas as origens têm igual tratamento nas diversas esferas da vida social. São os apóstolos da “democracia racial”, que continuam sustentando - mesmo contra todas as evidências empíricas - a tese de que toda e qualquer discriminação entre nós se deve ao fator classe, ou a outro qualquer, mas jamais ao fator raça. A verdade, contudo, é que no Brasil, tal como nos Estados Unidos da América - para ficarmos apenas nas duas maiores nações multirraciais do continente -, raça e classe interagem para determinar o status relativo de cada pessoa, sua posição no conjunto da sociedade. Essa similitude, aliada à eficácia dos modernos veículos de comunicação, faz com que os eventos da esfera racial em cada um desses países exerçam influência para além das fronteiras nacionais, podendo inspirar atitudes e comportamentos, bem como reações e respostas, evidentemente adaptadas aos seus respectivos contextos.
É nessa perspectiva que este número de Thoth traz três artigos importantes, as-sinados por renomados intelectuais afro-norte-americanos. Trata-se de textos publicados originalmente na revista Renaissance Noire, editada pelo Instituto de Assuntos Afro--Americanos/Programa de Estudos Africanos da New York University, sob a direção do professor Manthia Diawara, que já teve um artigo seu traduzido no número anterior desta revista. Referem-se à Marcha de Um Milhão de Homens, realizada há dois anos na cidade norte-americana de Washington. Convocada pelo polêmico líder dos muçulmanos negros, ministro Louis Farrakhan, a Marcha acabou atraindo as atenções de todos e levando à capital dos Estados Unidos centenas de milhares de negros de todas as orientações possíveis em matéria de religião e de política. Também obteve o apoio das mulheres afro--americanas, que acabariam realizando, meses mais tarde, sua própria versão da Marcha, igualmente focalizada neste número de Thoth. Eventos dessa natureza costumam ter um valor simbólico que ultrapassa os objetivos imediatos de seus organizadores, pois envolvem sentimentos e emoções que só podem vir à tona em grandes manifestações de massa, propiciados pela percepção de se pertencer a uma ampla coletividade - em verdade, a uma nação - identificada pelas condições de vida e também pelos sonhos e aspirações. Como sempre gosto de enfatizar, apenas para reavivar memórias, não foram os norte-americanos quem nos ensinou a lutar por nossos direitos. Na verdade, por muito tempo estivemos à frente deles nesse aspecto - como prova a nossa Frente Negra dos anos trinta, para não falar na República de Palmares, cujos fundamentos foram lançados num período em que nem mesmo havia um sistema escravista na América do Norte. Mas não podemos deixar de reconhecer o caráter inspirador de suas estratégias de luta nos últimos trinta anos, as quais nos são in-dubitavelmente úteis pelo menos como referencial na busca de nossos próprios caminhos."
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