top of page
Visões da África, Cultura Histórica
e Afro-Brasilidades
(1944 - 1988)
Elio Chaves Flores

"[Dona Faustina, a proprietária branca]:
- Então é você quem rouba as minhas
frutas. Negra vagabunda. Negro não
presta.
Respondi:
− Os brancos também são ladrões porque
roubaram os negros da África.
Ela olhou-me com nojo.
− Imagina só se eu ia até a África para
trazer vocês... Eu não gosto de macacos.
Eu pensava que a África era a mãe
dos pretos. Coitadinha da África que,
chegando em casa, não encontrou os seus
filhos. Deve ter chorado muito.
Carolina Maria de Jesus.
Diário de Bitita, 1982.
A escritora negra Carolina Maria de Jesus, através de seus diários, narra casos cotidianos de racismo no Brasil entre o final da década de 1940 – quando pacientemente começa a escrever em cadernos usados e papéis de embrulho de mercadorias − e meados da década de 1970 – quando entregou manuscritos de sua infância e juventude que seriam publicados em livro, na França, no início da década de 1980. A epígrafe acima citada consta no sexto capítulo, designado de “Os Negros”, momento em que Carolina Maria de Jesus começa narrar a história de um “furto famélico”, ao tentar apanhar mangas para comer. Entretanto a empreitada fracassou, ela caiu e despertou os cães que começaram a latir até que Dona Faustina, a proprietária branca, encontrou-a com “o seio recheado de mangas”. Desse conflito surgiram ríspidas e doídas acusações raciais. Frases tais como “negra vagabunda” e “negro não presta” enchiam as bocas bendizentes de setores significativos das elites e das classes médias que, não por acaso, foram às ruas e praças exigir o fim das liberdades democráticas por, pelo menos, duas décadas: 1984-1964. Essas bocas bendizentes, ao mesmo tempo que proclamavam “democracia racial”, praticavam “racismo linguístico” ao mínimo desconforto social.
Entretanto vale destacar – explicitar vozes e escritas negras é objetivo desta obra − a antítese racial e a memória africanista da autora: “Os brancos também são ladrões porque roubaram os negros da África”. Autodidata, Carolina Maria de Jesus afirma um saber histórico que não se encontra nos manuais e livros escolares. Há algo mais. Com efeito, a “África como mãe dos pretos” era uma dimensão estética e simbólica do Pan-Africanismo e da Negritude afrocaribenha e africana, posteriormente incorporada aos movimentos negros no Brasil com significação de afro-brasilidade. Carolina Maria de Jesus recupera essa imagem da infância, certamente ressignificada depois de suas experiências como escritora e poetisa.
Não é improvável que a resposta e o “pensamento” tenham sido elaborados, décadas depois do “fato racial”, por entre as rugosidades e as entrelinhas dos papéis usados..."

bottom of page